sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Parte do ensaio de Norman Mailer - Birds and Lions - sobre escritores e a escrita

Just as we pay for the social insularity of Detroit engineers by having to look at the repetitive hump of their designs until finally what is most amazing about the automobile is how little it has been improved in the past fifty years, so literature suffers from its own endemic hollow: we are overfamiliar with the sensitivity of the sensitive and relatively ignorant of the cunning of the strong and the stupid. We remain one-it may be fatal-step removed from an intimate perception of the procedures of the corporate, financial, governmental, Mafia, and working-class establishments. Investigative journalism has taken us into the guts of the machine, but not far enough-we still do not have much idea of the soul of any inside operator... Of course, many a young writer has put himself in danger in order to pick up material for his writing, but, as a matter to make one wistful, not one major American athlete, politician, engineer, trade-union official, surgeon, airline pilot, chess master, call girl, sea captain, bureaucrat, mafioso, pimp, recidivist, physicist, rabbi, movie star, clergyman, priest, or nun has emerged as a major novelist since the Second World War. Novelists are oxymorons. They are sensitive and insensitive. Full of heart and heartless. You have to be full of heart to feel what other people are feeling. On the other hand, if you start thinking of all the damage you are going to do, you can’t write the book-not if you’re reasonably decent. (Of course, a malicious person might kick off the traces, and feel young and happy again at being so mean.) The point is that you are facing a true problem. Either you produce a book that doesn’t approach what really interests you or, if you go to the root with all you’ve got, there is no way you won’t injure family, friends, and innocent bystanders... There is a touch of writer’s block in almost every working day. It is part of the experience of writing. When you are faced with this situation, there is a tendency to force a continuation, but that can be equal to blowback. From its point of view, the unconscious has done its job. It’s damned if it’s going to give you any more right now. If you insist, flatness of affect will be your reward-nothingness, the dread antagonist. One of the most painful elements in the act of writing is to live so much of the day with that nothingness. It is why many talented men and women produce a good book or two, then stop. To deal on a daily basis with nothingness is vitiating. Writers who have been at it for decades often do not keep a vital inner life. ...Suppose the unconscious has a root in the hereafter which our conscious mind does not. If so, it will have deeper notions about death than we do. Let us then dare to surmise that the unconscious is on close, even familial, terms with that most elusive presence in the conscious mind-our soul. If that is the case, the unconscious will feel exploited by the novelist’s push to extract so much of its resources...

Primeira Fronteira

Para aqueles que ficaram curiosos, enquanto conversávamos de copo na mão, informo que o documentário A Primeira Fronteira, passa dia 5 de Dezembro, às 21h00, na RTP2. Podem ver um trailer aqui.

Texto da Branca

Uma turma, dois professores. Fiquei na metade do professor que não ganhou o prêmio. A colaboração inicial foi ganhando tons de cinza, até o ponto em que a disputa tornou-se evidente.

O sumiço de alunos foi o primeiro revés do Sem Prêmio. Ele, que aparentemente tinha saído na frente – dicção perfeita, contra um clássico engolidor de sílabas – foi perdendo a confiança a cada nova cadeira vazia. E foram muitas, todas em sua metade.

Creio que foi quando percebeu que até os Escritores Convidados (todos com prêmio, diga-se de passagem) só se referiam ao Engolidor de Sílabas que o pobre despremiado desesperou-se. Parece-me que não resistiu ao clichê “só há espaço para um jovem talento promissor nesta sala”.

Na mesma aula, aproveitou o já institucionalizado “momento do cigarro apenas para professores” (os alunos que fiquem escrevendo textos como este em apenas 10 minutos, no auge da abstinência de nicotina) para seu ato final. De dentro da sala, tudo o que ouvimos foi o Sem Prêmio a gritar: “não, não faça isso, já prometi não revelar a ninguém que você roubou de mim o seu romance premiado, Três Vidas”. Mesmo desconfiada da verossimilhança do diálogo, corri para o terraço, assim como todos os alunos.

Chegamos no clímax, com o Sem Prêmio caindo parapeito abaixo, o olhar de terror na face, os óculos do Engolidor de Sílabas entre seus dedos. Aquele que supostamente empurrou tinha mesmo sinais de luta no semblante, um arranhão no rosto, o cabelo - que costuma ser uma peça uniforme – até despenteado.

Ficou ali, atônito, inerte, pela primeira vez sem sílabas para engolir. Até hoje não proferiu palavra e aguarda a sentença do julgamento em prisão preventiva.

Acredito em sua inocência – e admiro o engenho do Sem Prêmio. Aposto que, ao roubar-lhe a condecoração em seu último ato, ainda pensou que esta seria a definitiva: afinal, o gênero dos romances de cárcere já deu o que tinha para dar.

Road trip a Penafiel

A pedido de muitas famílias, aqui fica o texto que o professor sem prémio, escreveu sobre o professor com prémio.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Três Arcos e o Arco Narrativo

TRÊS ACTOS e o ARCO NARRATIVO


Definição dos três actos:


- Exposição inicial (acto 1), introdução, apresentação das personagens, arredores e antecedentes da história, falha fundamental do protagonista. Situação de CRISE que leva ao CONFLITO (início do acto 2)

-Luke Skywalker conhece Obi-Wan Kenobi, que lhe diz que o seu pai foi morto por Darth Vader
-Dorothy e o cão, Toto, são apanhados num tornado e levados para a Terra de Oz
-O peixe gigante morde a linha do Velho que não pesca há 84 dias


-Acto 2: desenvolvimento e sucessivas complicações e obstáculos (com vários Plot Points, isto é, mini-crises que fazem avançar a história) que advém desse conflito, bem como a VIAGEM EMOCIONAL do(s) protagonista(s). A viagem emocional conduz ao clímax e ao final do acto 2, onde a história, uma vez mais, muda de direcção: irá o protagonista superar a sua falha e conseguir aquilo que quer? Dá-se o CLÍMAX da história.

Será que Luke Skywalker conseguirá destruir a Estrela da Morte e cumprir o seu destino?
Será que a Dorothy conseguirá roubar a vassoura à Bruxa Má que lhe permite ir para casa?
Será que o Velho conseguirá salvar o peixe de ser comido pelos tubarões e regressar à vila com o seu orgulho?


-Acto 3: O conflito inicial é resolvido, de maneira dramática, mostrando as mudanças no protagonista, que percorreu uma viagem emocional e um ARCO NARRATIVO. Unem-se as pontas soltas da história e temos evidência da mudança interior do protagonista.

-Luke Skywalker realiza-se como guerreiro Jedi e honra memória do seu pai
-Dorothy volta para casa nunca mais podendo esquecer a terra de Oz e os amigos que fez
-O Velho regressa, à beira do colapso, mas tendo recuperado a sua dignidade perante a vila de pescadores

Diálogos

DIÁLOGOS

a) Verosimilhança

b) Personagem

c) Sedução / Excesso

VEROSIMILHANÇA: O diálogo não pode ser artificial e sem vida, como um instrumento musical mal afinado. Não deve ser um substituto de uma descrição ou de uma narração. Diálogo revela carácter, não serve para passar informação.

“A chamada veio a meio da noite, três da manhã, e ia-nos pregando um susto de morte.

-Atende! Atende! – grita a minha mulher. – Santo Deus, quem é? Atende!

Acendo a luz, vou à casa de banho e o telefone continua a tocar.

-Atende! – berra a minha mulher do quarto. – Santo Deus, o que é que se passa, Jack? Não estou para aturar isto!”

Raymond Carver

“-O que viste dentro do poço?

- Nada…nada…a cor…queima…frio e húmido…mas queima…vivia no poço…vi-o…uma espécie de fumo…tal como as flores na Primavera passada…o poço brilhava à noite…tudo vivo…”

H.P.Lovecraft

PERSONAGEM: O diálogo tem de ser adequado à personagem, cada uma deve ter a sua voz própria. Criar mecanismos de identificação para cada personagem, através de tiques, repetições, frases chavão, e gostos. As personagens têm de falar verdade, não pode ser pergunta /resposta.

“Quando Donna chegou ao restaurante, havia apenas um homem sentado sozinho, numa mesa junto da janela.

-És o Checkers? – Donna estendeu a mão. – Sou a Donna.

Checkers levantou-se. Sorriu, apertou a mão de Donna, e sentaram-se.

-Achava que eras negra. – disse.

-Desculpa?

-Achava que eras negra. Donna. Pareceu-me um nome afro-americano. – Checkers encolheu os ombros. – Paciência.”

Kissing in Manhattan, David Schickler

SEDUÇÃO / EXCESSO: Um bom diálogo é uma conversa privada que queremos ouvir (prazer culposo). Um mau diálogo pauta-se pelo excesso de exposição e informação.

“-Bebemos mais um copo?

-Está bem.

O vento quente fez a cortina roçar na mesa.

-A cerveja está óptima e fresca – disse o homem.

-Sim – disse a rapariga.

-É uma operação muito simples, Jig – disse o homem. – Na realidade não chega a ser uma operação.

A rapariga olhou para o chão.

-Eu sabia que não te ias importar, Jig. Não vai ser nada. Passa num instante.

A rapariga não disse nada.”

Hart’s War, John Katzenbach

Pryce agarrou Tommy mais uma vez.

“Tommy”, murmurou Pryce, “não é uma coincidência! Nada é o que parece! Cava mais fundo! Salva-o, rapaz, salva-o! Neste momento, mais do que nunca, creio que Scott está inocente!...Agora é convosco, rapazes. E lembrem-se, conto convosco para superar a situação! Sobrevivam! Aconteça o que acontecer!”

Virou-se para os alemães. “Está bem, Hauptmann”, disse Tommy, súbita e extremamente calmo. “Agora estou pronto. Disponha de mim como quiser.”

Philip Roth, Goodbye Columbus

Narrador vai telefonar a Brenda, a rapariga que conheceu nessa manhã na piscina.

“A quem é que vais ligar?”, perguntou a minha tia Gladys.

“A uma rapariga que conheci hoje.”

“Foi a Doris que vos apresentou?”

“A Doris não me apresentaria ao gajo que limpa a piscina, tia Gladys”.

“Não sejas tão crítico. Uma prima é uma prima. Como é que a conheceste?”

“Não a conheci. Vi-a”.

“Quem é ela?”

“O apelido é Patimkin”.

“Não conheço nenhum Patimkin”, disse a tia Gladys, como se conhecesse alguém que pertencesse ao Clube de Campo de Green Lane. “Vais telefonar-lhe se nem a conheces?”

“Sim”, expliquei. “Vou-me apresentar.”

“Casanova”, disse ela, e continuou a preparar o jantar do meu tio.

Caixa de Ferramentas

CAIXA DE FERRAMENTAS

Vocabulário

-Não procurar palavras difíceis; a primeira palavra é geralmente a melhor (porquê dizer “corpo discente” quando podemos dizer “estudantes”? Não ornamentar o vocabulário: é como vestir um traje de gala a um animal doméstico.

-Cuidado com a linguagem coloquial ou transcrita foneticamente. “Que fixe!” ou “trim! Trim!” devem ser usados em circunstâncias particulares, personagens especiais, ou NUNCA.

-Cuidado com a VOZ PASSIVA. Podemos pensar que confere autoridade ou majestade à obra, mas é apenas cobardia. Porquê escrever “o corpo foi transportado por João” quando se pode escrever “João transportou o corpo”? O corpo não deve ser o sujeito da frase.
Exemplo 2: “Ela será sempre recordada por mim” (voz passiva) “Irei sempre recordar-me dela” (voz ACTIVA)

-As descrições devem fazer sobressair o diferente e não o geral. Exemplo: descrever um coelho só é interessante se ele tiver, por exemplo, um focinho azul. De resto, todos sabemos com que se parece um coelho, é inútil estar a descrevê-lo. Fazer sobressair o particular e não cansar o leitor com pormenores inúteis.

-Cuidado com as comparações. Evitar o cliché e as metáforas demasiado distantes da imaginação possível do leitor. Manter as comparações simples e evitar as redundâncias.

-Excesso de advérbios de modo dificulta a leitura e torna a prosa lenta e morosa. “Fluentemente”, “habilmente”, “lentamente”, etc

-As indicações de fala nos diálogos devem ser, com honrosas excepções, “disse”. “João disse”, “disse Pedro”, “disseram eles”. Outras indicações são de evitar, excepto se absolutamente necessárias (ex: “gritou”, “sussurrou”). Se o diálogo for bom, não é preciso escrever “advertiu” ou “ralhou” ou “silvou” ou “desferiu”

-O parágrafo é o motor da narrativa, não a frase: começar o parágrafo com um tópico e desenvolver esse tópico com narração, descrição, diálogo etc. As frases seguintes à primeira servem para a desenvolver e explicar. Não lançar tópicos inacabados em cada parágrafo, confunde o leitor. O objectivo do parágrafo é seduzir e acolher o leitor.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Hábitos e métodos de trabalho dos escritores

Aqui fica um artigo do Wall Street Journal sobre os métodos de trabalho de alguns escritores. Basta clicar aqui.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Sobre a desconstrução do herói shakespeariano

David Simon, romancista e autor da série The Wire:

Another reason the show may feel different than a lot of television: our model is not quite so Shakespearean as other high-end HBO fare. The Sopranos and Deadwood — two shows that I do admire—offer a good deal of Macbeth or Richard III or Hamlet in their focus on the angst and machinations of the central characters (Tony Soprano, Al Swearengen). Much of our modern theater seems rooted in the Shakespearean discovery of the modern mind. We’re stealing instead from an earlier, less - traveled construct—the Greeks—lifting our thematic stance wholesale from Aeschylus, Sophocles, Euripides to create doomed and fated protagonists who confront a rigged game and their own mortality. The modern mind—particularly those of us in the West—finds such fatalism ancient and discomfiting, I think. We are a pretty self-actualized, self-worshipping crowd of postmoderns and the idea that for all of our wherewithal and discretionary income and leisure, we’re still fated by indifferent gods, feels to us antiquated and superstitious. We don’t accept our gods on such terms anymore; by and large, with the exception of the fundamentalists among us, we don’t even grant Yahweh himself that kind of unbridled, interventionist authority.

But instead of the old gods, The Wire is a Greek tragedy in which the postmodern institutions are the Olympian forces. It’s the police department, or the drug economy, or the political structures, or the school administration, or the macroeconomic forces that are throwing the lightning bolts and hitting people in the ass for no decent reason. In much of television, and in a good deal of our stage drama, individuals are often portrayed as rising above institutions to achieve catharsis. In this drama, the institutions always prove larger, and those characters with hubris enough to challenge the postmodern construct of American empire are invariably mocked, marginalized, or crushed. Greek tragedy for the new millennium, so to speak. Because so much of television is about providing catharsis and redemption and the triumph of character, a drama in which postmodern institutions trump individuality and morality and justice seems different in some ways, I think.

O uso (magistral) da segunda pessoa

Leiam este conto do Junot Diaz, todo escrito na segunda pessoa, aqui.

Beijinhos no rosto, Rubem Fonseca

A sua bexiga terá que ser removida inteiramente, disse Roberto. E nesses casos prepara-se um lugar para a urina ser armazenada, antes de ser excretada. Uma parte do seu intestino será convertida num pequeno saco, ligado aos ureteres. A urina desse receptáculo será direcionada para uma bolsa colocada em uma abertura na sua parede abdominal. Estou descrevendo esse procedimento em linguagem leiga para que você possa entender. Essa bolsa será oculta pelas suas roupas e terá que ser esvaziada periodicamente. Fui claro?

Foi, respondi acendendo um cigarro.

Gostaria de marcar a cirurgia para logo depois desses exames que estou pedindo. Já lhe falei da relação entre o câncer da bexiga e o fumo?

Não me lembro.

Três em cada cinco casos de câncer na bexiga são ligados ao fumo. Esse vínculo entre o fumo e o câncer da bexiga é especialmente forte entre os homens.

Prometo que vou deixar de fumar.

Este ano, no mundo, ocorrerão cerca de trezentos mil novos casos de câncer de bexiga.

É mesmo?

É o quarto tipo de câncer mais comum e a sétima causa de morte por câncer.

Tive vontade de mandar o Roberto parar de me chatear, mas ele, além de meu médico, era meu amigo.

O câncer de bexiga, ele continuou, pode ocorrer em qualquer idade, mas usualmente atinge pessoas com mais de cinqüenta anos. Você faz cinqüenta anos no mês que vem. É um mês mais velho do que eu.

Estou atrasado para um compromisso, tenho que ir, Roberto.

Não se esqueça de fazer os exames.

Saí correndo. Eu não tinha encontro algum. Queria fumar outro cigarro em paz. E também precisava encontrar alguém que me arranjasse um revólver. Lembrei-me do meu irmão.

Telefonei para ele.

Você ainda tem aquela arma? Tenho. Por quê?

Quer vender?

Não.

Você não tem medo de que um dos teus filhos ache o revólver e dê um tiro na cabeça do outro? Uma coisa assim aconteceu outro dia. Deu no jornal.

Meu revólver está trancado numa gaveta.

O desse infeliz, segundo dizia o jornal, também.

Eu não li nada sobre isso.

Você sempre diz que só lê a manchete do jornal. Isso não dá manchete, acontece todo dia.

E como é que foi?

O menino estava brincando de mocinho e bandido com o irmão e a desgraça aconteceu. Qualquer dia vou ler no jornal que um sobrinho meu matou o outro numa brincadeira.

Deixa de ser agourento.

Vou passar aí hoje à noite.

Chegando na casa do meu irmão ele me disse, olha aqui esta gaveta, você acha que dois pirralhos podem arrombar essa fechadura?

Podem. Como? Quer ver eu arrombar essa merda?

Você é um adulto.

Onde é que está a Helena?

Está no quarto.

Chama ela aqui.

Contei para a mulher dele a tal notícia do jornal, que eu inventara.

Vivo pedindo ao Carlos para se livrar dessa porcaria, mas ele não me ouve, disse Helena.

Eu vim aqui para comprar o revólver, mas esse idiota não quer vender.

O que você vai fazer com o revólver?, perguntou Carlos.

Nada. Possuí-lo, apenas. Eu sempre quis ter um revólver.

Helena e o meu irmão discutiram algum tempo. Ela venceu o debate ao dizer que um dos meninos podia pegar o chaveiro quando meu irmão estivesse dormindo, ou quando ele esquecesse o chaveiro num lugar onde os moleques pudessem achar, ou em outra ocasião qualquer. Afinal, Carlos abriu a gaveta e tirou o revólver.

E você, para piorar as coisas, mantém esse troço carregado, eu disse, depois de examinar a arma.

Maluco irresponsável, disse Helena, furiosa, você sempre me disse que o revólver não tinha balas. Olha, deixa o seu irmão levar essa porcaria com ele, agora. Do contrário eu saio de casa e levo as crianças.

Peguei o revólver e fui para o meu apartamento. Telefonei para a minha namorada. Senti vontade de ir ao banheiro mas sabia que ia ver sinais de sangue na urina, o que sempre me dava calafrios. Isso podia atrapalhar o meu encontro. Urinei de olhos fechados e também de olhos fechados acionei a válvula de descarga várias vezes.

Enquanto esperava minha namorada, fiquei pensando no futuro, fumando e tomando uísque. Eu não ia ficar a vida inteira enchendo com xixi uma bolsa colada no corpo, que depois tinha que ser esvaziada, sei lá de que maneira. Como eu poderia ir à praia? Como poderia fazer amor com uma mulher? Imaginei o horror que ela sentiria ao ver aquela coisa.

Minha namorada chegou e fomos para a cama.

Você está preocupado com alguma coisa, ela disse, depois de algum tempo.

Não estou me sentindo bem.

Não se preocupe, querido, podemos ficar apenas conversando, adoro conversar com você.

Essa é uma das piores frases que um homem pode ouvir quando está nu com uma mulher nua na cama.

Levantamos e nos vestimos sem olhar um para o outro. Fomos para a sala. Conversamos um pouco. Minha namorada olhou para o relógio, disse tenho que ir, querido, me deu uns beijinhos no rosto, foi embora e eu dei um tiro no peito.

Mas esta história não termina aqui..Eu devia ter atirado na cabeça, mas foi no peito e não morri. Durante a convalescença, Roberto me visitou várias vezes para dizer que tínhamos pouco tempo, mas ainda podíamos fazer a cirurgia da bexiga, com êxito.

Isso foi feito. Agora eu esvazio com facilidade a bolsa de urina. Ela fica bem escondida sob a roupa, ninguém percebe que está ali, sobre o meu abdome. O câncer parece que foi extirpado. Não tenho mais namorada e estou viciado em palavras cruzadas. Deixei de ir à praia. Fui uma vez, para jogar o revólver no mar.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Anatomia de uma cena

Entra tarde. Sai cedo. Isto é: economia na narrativa.

Descrições do espaço: absolutamente necessárias.

Descrições das personagens: assertivas e demonstrativas: mais vale a pena dizer que anda sempre com um pente no bolso das calças do que dizer que é vaidoso.

Situação de conflito. O que cada personagem quer?

Diálogo verosímil e que faça avançar a narrativa.

Mostra, não expliques.

Aquilo que o narrador sabe mas as personagens não sabem - no caso do texto de Marçal Aquino, o narrador sabe que o cliente é um pastor de Igreja, mas a prostituta não sabe. Isso adensa o conflito.

Supresa - tirar o tapete ao leitor. Exemplo: no texto de Thom Jones, o narrador, que odeia a cunhada, acaba a dormir com ela.

Considerações pós cena - apenas se absolutamente necessárias, como acontece no texto de Thom Jones, no qual, após dormir com a cunhada, admite que todo o comportamento humano é abominável.

Fuck

Texto Miguel Soares

Foi no meu primeiro dia de trabalho na fábrica que aquilo começou. Eu que mal tinha saído do centro de Lisboa a não ser para ir comprar caramelos a Badajoz. Que experiência! Procurar uma fábrica no meio da confusão industrial de Sacavém é obra. Tinha acordado de noite na pequena casa que os meus pais me deixaram no elevador da Bica e enfiei-me num autocarro cheio de senhoras das limpezas e homens das obras. Senti-me parte da amálgama humana que mantém o mundo nos eixos. Algum orgulho até por causa deste grande ego nunca me larga. Ao longe vi os primeiros raios de sol lá longe sobre a lezíria. Na portaria tinha o Nicolau à minha espera.
- Então pá? Estamos atrasados. Logo no primeiro dia pôrra. Assim não vamos longe.
- 15 minutos. Até dá charme vais ver.
Na verdade deixaram-nos à espera mais de uma hora ainda. Houve tempo para tudo entretanto. Até para conhecer a matulona da Deolinda que era secretária do homem. Mal eu sabia as coisas loucas que ela ainda me haveria de fazer. Estávamos no segundo café da máquina chiante que devia estar ali desde a revolução industrial quando me bateram nas costas.
- Você deve ser o filho do Albino certo? Vê-se logo pela sua cara. Venham entrem para o meu gabinete.
Nunca tinha visto nada assim. E muito menos o esperaria ali no meio daquela fábrica perdida na neblina de Sacavém. O gabinete era uma exibição da mais avançada tecnologia que eu já tinha visto. Senti-me noutro país. Que raio nos quereria este tipo? O meu pai sempre me disse o melhor dele e isso descansava-me um pouco. Mas na verdade só o tinha visto no funeral e pouco sabia da sua vida.
- Sabem alguma coisa da dinastia Ming?
Eu e o Nicolau olhámos um para o outro e mantivémos o silêncio.
- Não tem problema. Têm tempo de sobra no avião para estudar a documentação. Se concordarem partem para a China hoje mesmo.

Texto, Branca

Só uma vez o vi com medo, a caminho do hospital, o ar a lhe faltar. Seus olhos me diziam “ainda não é hora, eu preciso de mais tempo”.
Teve.
E soube apreciar cada minuto: viu tantos filmes quantos sempre quis, devorou página por página dos livros que um dia se prometera ler. Reuniu novamente a família, deu para cada um uma lembrança inesquecível – e mais do que isso, nos fez rir, e muito. Sempre foi de um humor escrachado, sem amarras, destes que faz rir até carpideira em horário de trabalho.
A proximidade da morte libertou ainda mais seu riso. Arquitetava cenas e combinava conosco a participação: quando o vizinho passasse de visita, nós deveríamos convidar-lhe a entrar - e já dar as notícias da saúde de papai. “Ele está bem, a quimioterapia tem surtido efeitos. O maior problema tem sido a queda dos cabelos, sabe como papai é vaidoso. Colocou uma peruca, não lhe caiu bem, mas nós estamos apoiando.” Esta era a deixa para que papai adentrasse a sala de peruca rastafári, as tranças escorrendo até a cintura. O vizinho ainda demorou-se um bom tempo elogiando seu “estilo tão jovial” até, enfim, perceber.
Não sei por que tanta gente repete feito maquina que a única certeza é a morte. Patavinas, era sim a última coisa que eu esperava, mesmo que todos os diagnósticos fizessem questão de afirmar, “quatro meses de vida”.
Nestes cento e trinta e dois dias aprendi um tanto que julgava já saber. Coragem, generosidade, escolhas, vontade: palavras que vivemos atirando aos outros, muitas vezes antes de sabê-las. Até que, em uma tarde de maio, quando segurava as mãos de meu pai e vi a vida sair de seu corpo, entendi a diferença que faz viver.

Texto, Miguel Magalhães

Todos os Invernos se repete o mesmo ritual. De entre os homens, aqueles que se encontram desocupados seguem o Zeca, o mais novo dos três tios ainda vivos. Atravessam a quinta até ao coberto onde se encontra o enorme “canhoto” que terá sido cortado nas vésperas e que ficará a arder desde a consoda até ao dia dos reis.
Recordo de quando era criança e ficava sempre impessionado com o tamanho do tronco que, em conjunto, conseguíamos fazer rolar pelo corredor até à cozinha grande. “Empurra daí”, “mais para a esquerda”, “não deixes bater na porta”... e lá ia ele, sempre rolando até ao seu sítio, como se só lhe tivésemos de indicar o caminho.
O riso inconfundível dos tios, duas gerações acima da minha imprime ancestralidade à tradição, e as sonoras gargalhadas do cardume de crianças que orbita sempre em redor do acontecimento, lembra a tranquilidade que a vida pode e deve ter.
Todos sabemos que à noite seremos muitos, sempre a rondar os 50. Que se comerá polvo e bacalhau e que, no final, haverá presentes: embrulhos, brinquedos e boa disposição. Também todos sabemos que aquele velho e enorme tronco, que demorou dezenas de anos a ficar deste tamanho, irá arder dentro da lareira aquecendo-nos noite fora, daqui até ao dia dos reis.

Texto, Sílvia

Barcelona - Tibidabo
Sempre foi o meu lugar preferido. Aquele local de refúgio dos finais de tarde perdidos na Catalunha. Do alto de Tibidabo Ela adormece aos meus pés com a cabeça repousada numa linha ténue em tons de laranja onde o mar e o céu misturavam-se. E lá do alto consegue-se ter a melhor das vistas com o perfeito dos silêncios.
Um dia li que as grandes cidades são compostas de linhas desenroladas ao acaso e sem qualquer sentido. Barcelona não é assim. Ela é composta sim por linhas desenroladas, muitas, mas simetricamente, que formam quarteirões perfeitos de culturas e cheiros diferentes, onde entre o passado e o presente, entre Gaudi e Jean Nouvel, de alguma forma costura-se um estilo que só ali sobrevive.
Muitos dirão que a âncora de Barcelona é Montijuic, Icaria ou as ruelas estreitas do Born que parecem nunca experimentar a solidão, mas para mim será sempre aquele parque de atracções, e note-se que o uso da palavra atracções e não de diversões não me parece casual. Perdida e logo reencontrada após seis kms de curvas serpenteadas, no topo da Serra, onde a roda gigante fica em pausa no momento em que o pôr-do-sol reflecte-se na Torre de Agbar. O som dos sinos da igreja a entoar em pano de fundo indicam a hora de encerramento do local. Esta é a fotografia a nascer na minha cabeça em primeiro lugar, quando revivo aqueles anos passados. É de cima que se consegue a melhor das perspectivas.

Texto, Cláudia

Chamou-se Dinastia Ming à ascendência que Chao, o Perseverante, iniciou no final do séc. XII na China. Chao, na altura um miúdo franzino de apenas 12 anos de idade, amarelo como todos os outros, arriscou a humilhação pública ao ser o único adversário daquele que durante muitos anos havia sido o mais temido e mais abominável dos comedores de arroz. O Animal, como ficara conhecido o campeão três vezes consecutivas destes concursos que se realizavam anualmente, devorava sofregamente tudo o que de comestível lhe pusessem à frente.
Ora, daquela vez, incitado pelas profecias do fim do ano do Porco e o anúncio do ano do Dragão, Chao-Ming inscreveu-se no violento banquete e, para espanto de uns e gáudio de outros, derrotou o Animal. A sua participação acabou horas depois do Animal ter caído redondo no chão, a espumar da boca, deitando arroz pelos olhos. Chao manteve a sua postura inalterável, costas direitas, olhos fechados, paus hirtos nos dedos apertados. Ganhou por uns meros 12 bagos de arroz. Os mesmo que os seus anos de idade. Já o fogo estalava no céu e os dragões coloridos esvoaçavam no ar. Poucos foram os que o testemunharam, mas a fama de Chao voou, e nessa mesma noite teria início a famosa Dinastia Ming. Feita de contornos transcendentais, valentia e coragem. Feita essencialmente de perseverança, qualidade que Chao ajudou a que fosse uma das mais louvadas na China até aos dias de hoje.

Textos, André

DINASTIA MING

A dinastia Ming é, como todos sabemos, uma dinastia com um nome ridículo. Mas fácil de dizer. Tudo começou há largos milhões de tempos atrás, num sítio abençoado pelos deuses e amaldiçoado também pelos deuses. (Naquela altura os deuses mandavam em tudo, mas - verdade seja dita - eram muito indecisos). Um dia, cansados de tantas indecisões, os deuses tomaram - finalmente! - uma medida. Acabar com a fome? Acabar com a guerra? Fazer do Benfica campeão? Nada disso. A decisão única e que alteraria o rumo da História mundial foi a de criar uma dinastia. Isso mesmo, uma dinastia. Meteram mãos à obra e, durante mais de muitos milhões de tempos, entreteram-se na sua construção. Depois de todo este trabalho, encostaram-se nas nuvens e deixaram-se adormecer. Até hoje. Como o mundo não parava, os humanos olharam para aquela dinastia e decidiram dar-lhe um nome. "Ora bem, que nome vamos dar a esta dinastia que perdurará para todo o sempre?", perguntou o director da dinastia (um director eleito para uma dinastia sem nome). "E que tal dinastia Ming? É um nome curto, fica no ouvido e, daqui por uns anos, até dá para fazer um franchising", respondeu o criativo. O director pensou e respondeu com um assombroso "Não!", "Esse nome é horrível, pequenino e não tem estilo nenhum". O criativo, que já estava chateado que chegue por ter sido contratado para uma dinastia que não tinha nome, levantou-se da cadeira, deu um murro na mesa e outro no director. O director começou a chorar, chamou pela mãe, ela não veio, e atirou-se da janela. Felizmente estava no décimo oitavo andar - quer dizer, felizmente para o criativo, que deixou de ter opositores. Mesmo assim, ainda teve de pagar o reparo da janela e o tampo da mesa, o que não impediu o nascimento da dinastia Ming. O criativo casou com a mãe do ex-director - que tinha chegado atrasada - e viveram felizes para sempre. Pelo menos enquanto os deuses estiverem a dormir.


CASA DA MINHA AVÓ

Tem quatro paredes, um telhado e mil recordações. Lá fora, um caminho de terra segue para a mata que toca com as pontas do verde nos muros da casa. De um lado, um terreno de cultivo com árvores de fruto e legumes por nascer. Do outro lado, um monte de areia que sobe pelo muro do galinheiro. Um portão vermelho de ferro, um canteiro de flores e vinte e quatro janelinhas ao longo da parede de entrada. Cá dentro, duas bicicletas encostam-se à parede da Casa dos Sacos - um parque de diversões de velharias: balanças, caixotes, baldes, cadeiras, mesas, vasos, candeeiros e sacos, muitos sacos. O pátio de pedra desce ligeiramente em direcção ao poço de água - sempre esteve tapado, afinal, de onde poderia eu roubar ameixas daquela árvore? Ao lado do poço, uma porta com uma carpintaria lá dentro e ainda uma garrafeira dezassete degraus abaixo. O chão está frio - sempre esteve frio - e a corda que pendura a roupa ainda é a mesma. A roupa é que não. A minha avó agora apenas existe nas peças de dominó escondidas no armário - na terceira prateleira do lado esquerdo, ao fundo, debaixo dos casacos e atrás das camisolas de lã -, nos blocos de papel debaixo do telefone, nas bolachas Maria com manteiga, na ponta do sofá junto à lareira, nas fotografias penduradas ao lado da porta do quarto de hóspedes. E, claro, na máquina de costura junto à televisão. Ao fundo do corredor, a casa de banho. Pequenina. A mesma madeira do chão leva a um quarto, à cozinha e a uma sala utilizada apenas em dias de festa. Tudo continua na mesma. As coisas não mudaram de sítio. Nem as recordações. Tem um telhado e quatro paredes. É a casa da minha avó.

O detective e a Dinastia Ming, por Cristina Carvalho

O detective Pimentel foi recebido pelas luzes circulares das sirenes, um aceno do subchefe Fragoso, passou a barreira policial e avançou aborrecido, por entre o alarido e os mirones; tinha deixado o jantar a meio, um prato de arroz de pato e uma garrafa de vinho tinto do Douro e agora, neste caso, em vez de um morto contava com dois. Entrou no museu, às escuras. Um segurança fardado, semi-adormecido, sentado num banco na penumbra, rodava na mão uma lanterna a pilhas. O detective Pimentel puxou do distintivo, a Dinastia Ming?, perguntou. O homem sobressaltou-se, Dinastia Ming? Acendeu a lanterna a pilhas de repente e espetou o foco no distintivo. O detective impacientou-se, desculpe, o senhor importa-se de me indicar onde fica a Dinastia Ming? O homem deixou o foco de luz descer do distintivo até aos sapatos descorados do detective, voltou a subir o foco pelo fato de fazenda fora de moda e a dirigi-lo para a cara do polícia enquanto pensava. Depois disse devagar, mastigando as palavras, na China, penso que fica na China.

Cláudia Santos e a hilariante Dinastia Ming!

Chamou-se Dinastia Ming à ascendência que Chao, o Perseverante, iniciou no final do séc. XII na China. Chao, na altura um miúdo franzino de apenas 12 anos de idade, amarelo como todos os outros, arriscou a humilhação pública ao ser o único adversário daquele que durante muitos anos havia sido o mais temido e mais abominável dos comedores de arroz. O Animal, como ficara conhecido o campeão três vezes consecutivas destes concursos que se realizavam anualmente, devorava sofregamente tudo o que de comestível lhe pusessem à frente.
Ora, daquela vez, incitado pelas profecias do fim do ano do Porco e o anúncio do ano do Dragão, Chao-Ming inscreveu-se no violento banquete e, para espanto de uns e gáudio de outros, derrotou o Animal. A sua participação acabou horas depois do Animal ter caído redondo no chão, a espumar da boca, deitando arroz pelos olhos. Chao manteve a sua postura inalterável, costas direitas, olhos fechados, paus hirtos nos dedos apertados. Ganhou por uns meros 12 bagos de arroz. Os mesmo que os seus anos de idade. Já o fogo estalava no céu e os dragões coloridos esvoaçavam no ar. Poucos foram os que o testemunharam, mas a fama de Chao voou, e nessa mesma noite teria início a famosa Dinastia Ming. Feita de contornos transcendentais, valentia e coragem. Feita essencialmente de perseverança, qualidade que Chao ajudou a que fosse uma das mais louvadas na China até aos dias de hoje.

Dinastia Ming por Assunção Duarte

Lá em cima, no cume da montanha e escondido na névoa, estava o lugar da Honra Perdida. Os olhos doíam-lhe com o vento frio, forçando as lágrimas que escorriam deles como se de fontes se tratassem, indo morrer geladas sobre o cachecol de pêlo de panda que prendia frente da boca com a mão enluvada. Nunca tinha sentido tanto frio como agora e quase não conseguia respirar com a altitude, mas não podia fraquejar. A longa caminhada que tinha iniciado no começo do Outono acabava no cume daquela montanha. Depois podia descansar. O destino cada vez mais próximo deu-lhe ânimo para erguer a pesada espada e a cravar na neve, um passo mais acima. Com as duas luvas de pêlo bem apertadas em torno do cabo brilhante, conseguiu fazer avançar o corpo tolhido pela rigidez da armadura. Um guerreiro da Dinastia Ming morre em pé com a armadura vestida, mas pode blasfemar muitas vezes contra ela. Tentou descortinar por entre as lágrimas o trilho coberto de neve que o levaria ao lugar onde finalmente poderia descansar e esquecer para sempre o seu último combate em Lao Yang. O pai, um antigo samurai que se deixara seduzir pelas delicadas colinas chinesas, não iria ter vergonha dele. Há três coisas que nunca voltam filho, repetira ele vezes sem conta à sombra da Gardénia gigante do jardim: uma flecha lançada, uma palavra dita e uma oportunidade perdida. Os olhos ficaram-lhe mais molhados ao pensar na gardénia que a mãe plantara no jardim quando ele nascera. Cerrou os lábios gelados. Ele também nunca mais iria voltar.
- Lembrem-se que era outra época. Uma época em que a honra valia mais do que todo o ouro do mundo. E que se um guerreiro perdesse a sua honra, mais valia morrer logo ali, ou então procurar o lugar da Honra Perdida. Tudo era melhor do que regressar desonrado e ultrajar a sua própria casa, cobrindo a família de vergonha e infâmia!
Parei por segundos para sondar disfarçadamente a minha audiência. O mais pequenino mantinha a custo os olhos abertos. Estava quase lá, na Terra da Honra, montado na sua almofada branca alada e partindo à conquista da muralha da China com a ajuda do coelhito branco que apertava com menos força à medida que o sono ganhava terreno. Já a Maria e o Pedro, esses mais dificilmente chegariam lá. Olhavam para mim atentamente, à espera, e percebi que a Maria repetia baixinho uma palavra recentemente aprendida: infâmia.

O Coveiro de António Brito

Ainda da segunda sessão, aqui fica O Coveiro (ideia do André) vista por António Brito

O Coveiro
1º Parágrafo

Foi uma vida a abrir valas para enterrar corpos. Fizesse chuva ou sol lá estava eu fazendo o impensável para a maioria das pessoas: enterrar gente. Sete palmos debaixo dos pés. Gostava. Uns preferem ser polícias, electricistas, corredores de automóveis, cantores. Eu quis uma profissão com futuro. Ser coveiro. Haverá sempre gente para enterrar. Ninguém é eterno, mais tarde ou mais cedo batem a bota e vêm ter comigo. Alguém virá bater-me à porta para abrir a cova e acomodar o novo inquilino. E lá vou. Vou sempre. Faço-o com gosto. Depois, os parentes pagam-me um copo na taberna, querendo com a mordomia manter a sepultura apresentável até ao desenterrar os ossos.
Mas há dois anos o impensável aconteceu. Depois desse dia chamaram-me todos os nomes. Nenhum deles bonito de ouvir. Internaram-me numa casa de alienados fazendo-me crer que era maluco, que uma pessoa com a cabeça no sítio nunca sentiria prazer em enterrar o filho. Mas eu senti. Não havia mais ninguém para abrir a cova, também não o teria permitido se houvesse. Era um trabalho meu. Entregaram-me o puto para enviar às minhocas, tenrinho, com nove anos. Vá, digam lá que mereci ser internado. É isso que estão a pensar. Mas eu tinha as minhas razões. O sacaninha só veio ao mundo porque a cabra da minha mulher foi para a cama com o Alfredo, o dono da mercearia. Uma foda dada na minha ausência no dia do funeral da Elvirinha, a velha professora. Enquanto eu abria a cova a puta abria as pernas ao merceeiro. Soube sempre que o puto não era meu.

Jorge Feliciano: A Morte de Tsu Ming Shu

A Morte de Tsu Ming Shu ou o fim de uma dinastia (e o começo de outra).

Quando olhou para o brilho do sabre, Tsu Ming Shu recordou todos os seus antepassados, que tiveram os destinos da Grande China nas suas mãos, nos últimos duzentos anos. Conquistaram terras ao inimigo e duplicaram o território, com jogos de diplomacia cínica que foram fermentando o ódio nos vencidos. Com os espólios dos povos conquistados construíram palácios e templos imponentes, que demonstram a grandeza e megalomania da sua família.
Agora, os ódios tinham convergido para uma revolta e, num ápice, para uma verdadeira revolução popular que lhe retirou o poder e o levou a esta situação.
Em trajes nada dignos de um imperador e com os pés agrilhoados, deitou-se de costas na tábua dura e desconfortável perante um plateia de ilustres que ansiavam por este dia há muito.
Viu o sabre ser erguido desde o chão até à posição vertical, como que tocando o céu para o levar ao inferno.
Virou a cara, na direcção oposta ao carrasco, e só ouviu este dizer, enquanto olhava para a imensa plantação de arroz: - Xau Xau!

Elementos do Romance

Elementos do romance:


-Diálogo: serve para mostrar o carácter das personagens e não para expor informação. Tem de ser trabalhado até ao “osso”.

-Acção (narração): faz avançar a narrativa. Não empatar com pormenores desnecessários.

-Descrição: reduzida ao mínimo indispensável. Um adjectivo em vez de dois; importa o detalhe que SOBRESSAI, não todos os detalhes.

-Pensamento: Monólogo interior da personagem. Deve ser usado com parcimónia excepto quando na primeira pessoa.

-Exposição: Fazer passar informação da maneira mais subtil possível. A evitar a todo o custo quando pode ser substituída por cena que revela a informação em vez de a expor.

EXEMPLOS

DIÁLOGO EXPOSITIVO:

Duas pessoas numa sala, homem e mulher.

Ele: “Suponho que deva querer saber por que está aqui a esta hora.”
Ela: “O seu telefonema às cinco da madrugada apanhou-me de surpresa. Estou nervosa.”

DIÁLOGO QUE MOSTRA CARÁCTER:

Duas pessoas numa sala, homem e mulher.
Ele: “Quer um cigarro?”
Ela: “Não costumo fumar a esta hora. Só quando me levam a jantar primeiro. Não foi o seu caso. Mas vou abrir uma excepção.”


ACÇÃO / NARRAÇÂO QUE EMPATA LEITURA:

“Chegou ao rio, coisa feita de água límpida banhada pela intermitente luz de um sol encoberto por esparsas nuvens plúmbeas. O rio estava lá, sereno, magnificente, como sempre estivera desde o princípio dos tempos”

ACÇÃO / NARRAÇÃO QUE AVANÇA NARRATIVA:

“Chegou ao rio. O rio estava lá.”

DESCRIÇÃO DEMASIADO DETALHADA:

“A qualidade coriácea, não deteriorável e quase indestrutível era um atributo inerente da forma de organização da coisa, e relacionava-se com um qualquer ciclo paleogéneo da evolução dos invertebrados que escapava completamente aos nossos poderes de especulação”

DESCRIÇÃO SUCINTA:

“A coisa era dura, indestrutível e invertebrada”.

PENSAMENTO DESNECESSÁRIO:

“De olhos fechados, Vera tentava organizar as suas ideias. Fora um dia bem comprido. Estou num submarino nuclear, disse para consigo, consciente da sorte que tinha em ter escapado com vida”.

PENSAMENTO BREVE MAS RELEVANTE:

“Para um homem da sua idade, cinquenta e dois anos, divorciado, ele conseguiu, julga, resolver bastante bem o problema do sexo.”

EXPOSIÇÃO DE INFORMAÇÃO FORÇADA:

“Rachel pôs-se de pé.
-Estão a baralhar-me.
Corky dirigiu-se a Tolland.
-Mike, tu é que és o tipo dos oceanos primordiais.
Tolland parecia satisfeito por ter chegado a sua vez.
-A Terra foi em tempos um planeta sem vida, Rachel. Depois, repentinamente, como que do dia para a noite, a vida explodiu. Muitos biólogos acreditam que a explosão da vida foi o resultado mágico de uma combinação ideal de elementos nos mares primordiais. Etc, etc, etc”

EXPOSIÇÃO SUBTIL:

“-Não faço ideia de como será a cidade – reconheceu Marcelo. – O pouco que sei é graças a Quanto Mais Quente Melhor.
-Quanto Mais Quente Melhor? – perguntámos, Marco e eu, em uníssono.
-O filme – respondeu Marcelo. (…) Urbana é a cidade gelada a que (Jack Lemmon e Tony Curtis) nunca chegam, pelo que se deduz que Urbana não deve ser uma maravilha ou que deve ser, pelo menos, o contrário da Florida.”

Anatomia de uma Cena: Bukowski

ANATOMIA DE UMA CENA: ENTRAR TARDE E SAIR CEDO

Charles Bukowski, Ham on Rye, p. 142:

“No dia seguinte tive sorte. Chamaram o meu nome. Era um médico diferente. Tirei a roupa. Ele apontou uma luz branca e quente na minha direcção e observou-me. Eu estava sentado na berma da mesa de exames.
-Hmmm, hmmmm, disse ele, uh huh…
Deixei-me estar sentado.
-Há quanto tempo é que tem isto?
-Há uns anos. Cada vez está pior.
-Ah hah.
Ele continuou a observar-me.
-Agora deite-se ali de estômago para baixo. Eu volto já.
Alguns momentos depois a sala estava cheia de gente. Eram todos médicos. Pelo menos vestiam-se e falavam como médicos. De onde teriam vindo? Eu julgava que quase não existiam médicos no hospital público de Los Angeles.
-Acne vulgaris. O pior caso que alguma vez vi em todos os meus anos de profissão!
-Fantástico!
-Incrível!
-Olhem o rosto!
-O pescoço!
-Acabei de examinar uma rapariga com acne vulgaris. Tinha as costas cobertas. Chorou. Perguntou-me: “Como é que alguma vez vou ter um homem? As minhas costas estão marcadas para sempre. Quero morrer!” E agora olhem para este rapaz! Se ela o pudesse ver, via logo que não tinha nada de que se queixar!
Seu idiota de merda, pensei, não percebes que eu consigo ouvir o que tu dizes? Como é que se chega a ser médico? Será que aceitam qualquer pessoa?
-Ele está a dormir?
-Porquê?
-Parece muito calmo.
-Não, acho que não está a dormir. Estás a dormir, rapaz?
-Sim.
Eles continuaram a fazer incidir a luz quente e branca em várias partes do meu corpo.
-Volta-te.
Voltei-me.
-Olhem, ele tem uma lesão no interior da bochecha!
-Bom, como é que vamos tratá-la?
-A agulha eléctrica, parece-me…
-Sim, claro, a agulha eléctrica.
-Sim, a agulha.
E assim foi decidido.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Pontos de Vista

Os parágrafos abaixo servem como exemplo de vários pontos de vista apresentados para a mesma história: interior, exterior, o ponto de vista do morto, e um estilo distanciado e analítico. Todos eles boas maneiras de abordar esta história. Pensem nos pontos de vista, de que falaremos em breve.

Assunção Duarte - parágrafo inicial

Conhecia-o desde sempre. Ele tinha estado em todos os funerais a que eu assistira na aldeia. Era um lugar onde se morria pouco e, quando acontecia, ele tornava o acontecido num verdadeiro evento. O seu lugar era sempre do lado direito da cova que abrira no dia anterior. Em todos a ocasiões vestia um fato escuro impecavelmente limpo e, com um ar sério e solene, ficava a aguardar o sinal do padre para baixar o caixão. Naquele dia eu senti que o estava a ver pela primeira vez. Sereno o seu rosto transmitia uma paz surpreendentemente pura. Capaz de me fazer invejar o que quer que fosse que lhe passava pelo pensamento. A voz grave do padre percorria sem obstáculos o ar límpido da manhã, mas não o suficiente para abafar o sussurro que percorria o povo que viera assistir ao enterro: O coveiro está a enterrar o próprio filho, diziam. E nem uma lágrima ele deita!

André Pereira - parágrafo inicial

“13 de Junho de 2009, Lisboa. Duas e meia da manhã. Simão Gomes Pereira, 62 anos, dá entrada no Hospital com sintomas de absolutamente nada. Boa aparência, simpático, saudável. Discurso coerente e articulado, consciência do espaço e do tempo. Tudo indica que seja mentalmente equilibrado. Nenhum distúrbio psíquico aparente. Só um pequeno pormenor, o seu filho morreu ontem.”

Sandra Cabral - parágrafo inicial

O meu pai foi o mais corajoso de todos, até ao final dos meus dias.

Coveiro de profissão fez questão de me preparar a sepultura.

Fundas, rectas, perfeitas como a minha, cavou-as toda a vida. Repetiu-as com brio, para amigos, alguns parentes, para a minha mãe, há muitos anos.
Nos caminhos do cemitério, sempre percorridos a passo de passeio, sabia cada esquina no seu lugar.
Perdeu o tino, a compostura, os modos discretos quando, finalmente, a doença me sugou a vida.
Daria a sua pela minha, num segundo, sem receios. O homem bom ajustaria contas com o diabo, no momento certo do destino para lhe pagar o pacto.

Nas sombras de silêncio, por entre campas, jazigos, coroas de flores e abraços, revolveram-se-lhe o estômago e o peito. A visão turva, o peito comovido como nunca, como na tarde em que morri.

Cristina Carvalho - parágrafo inicial

Enquanto estive fechado à força no asilo de alienados, a minha pá ficou catalogada como prova número um, esquecida numa prateleira alta do armazém forense e quando, ao fim de quinze anos, oito meses e dez dia de internamento, saí curado, foi o cabo dos trabalhos reavê-la. Durante a minha vida de coveiro, a minha pá e eu, inumámos três mil quinhentos e cinquenta e seis defuntos, entre os quais, pela ordem natural das coisas, pai e mãe e também um filho, o mais velho, morto em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas, causa provável de tudo o que veio a acontecer. Além disso, exumámos trinta e quatro cadáveres e efectuámos vinte e sete trasladações. Só não apreciamos, a minha pá e eu, a moda das cremações, tira-nos trabalho e o trabalho é alegria de viver.

Acusaram-me, entre outras coisas que esqueci, de ter enterrado o meu filho com alegria. Não de ânimo leve, não, reparem bem, com alegria. Durante anos, nas horas vagas, vasculhei, com esforço e a ajuda do guarda do hospício Leonel, as letras miudinhas e enviesesadas do Código Penal e nunca encontrei a tipificação de tal crime. De qualquer modo, parece que não é decente enterrar alegremente um filho. Não sei, é o que dizem. Primeiro disse-o a mãe, que eu era um monstro, um alienado (e isso, pelo menos, corroboraram médicos psiquiatras, advogados, juizes e até Leonel, o guarda do hospício que, nesse tempo, ainda não era meu amigo), disseram-no os irmãos, que também me alegraria enterrá-los, o que não é totalmente falso pois alegra-me enterrar qualquer um, e disseram-no os olhos azedos nas caras do padre, das carpideiras e dos gatos pingados. Eu limitei-me a cumprir o meu dever, colocar-lhe o óbolo na boca e entregá-lo a Caronte, com a mesma felicidade com que entreguei todos os outros.

Coisas a Lembrar

Robert McKee:

"Antes mesmo dos mitos, já as danças ou as pinturas nas cavernas contavam histórias. Jean-Paul Sartre disse um dia que todas as grandes histórias já tinham sido escritas. Mas eu acho que temos que reescrever as mesmas histórias no nosso tempo, com os meios e as circunstâncias em que vivemos. Os meus filhos nunca leram Ivanhoe, mas viram a Guerra das Estrelas, que lida com os mesmos valores, os mesmos arquétipos. Cada geração recria os mitos e reescreve as suas histórias, mas também cria novas histórias, novos mitos.

"Porque essas são as questões fundamentais da experiência humana, da sua vida interior. São histórias antigas, têm uma sabedoria universal."

"Dou-lhe um exemplo de uma boa protagonista: Blanche Dubois, do filme Um Eléctrico chamado Desejo, de Elia Kazan. Ela é alguém cuja vida perdeu o rumo e que faz uma caminhada até voltar a encontrá-lo. É alguém que luta para encontrar o equilíbrio."

Que qualidades é preciso ter para se ser um bom contador de histórias?

"Os atributos são sobretudo persistência, trabalho, abertura ao fracasso. A inspiração não chega.É preciso sabedoria."