quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cristina Carvalho - parágrafo inicial

Enquanto estive fechado à força no asilo de alienados, a minha pá ficou catalogada como prova número um, esquecida numa prateleira alta do armazém forense e quando, ao fim de quinze anos, oito meses e dez dia de internamento, saí curado, foi o cabo dos trabalhos reavê-la. Durante a minha vida de coveiro, a minha pá e eu, inumámos três mil quinhentos e cinquenta e seis defuntos, entre os quais, pela ordem natural das coisas, pai e mãe e também um filho, o mais velho, morto em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas, causa provável de tudo o que veio a acontecer. Além disso, exumámos trinta e quatro cadáveres e efectuámos vinte e sete trasladações. Só não apreciamos, a minha pá e eu, a moda das cremações, tira-nos trabalho e o trabalho é alegria de viver.

Acusaram-me, entre outras coisas que esqueci, de ter enterrado o meu filho com alegria. Não de ânimo leve, não, reparem bem, com alegria. Durante anos, nas horas vagas, vasculhei, com esforço e a ajuda do guarda do hospício Leonel, as letras miudinhas e enviesesadas do Código Penal e nunca encontrei a tipificação de tal crime. De qualquer modo, parece que não é decente enterrar alegremente um filho. Não sei, é o que dizem. Primeiro disse-o a mãe, que eu era um monstro, um alienado (e isso, pelo menos, corroboraram médicos psiquiatras, advogados, juizes e até Leonel, o guarda do hospício que, nesse tempo, ainda não era meu amigo), disseram-no os irmãos, que também me alegraria enterrá-los, o que não é totalmente falso pois alegra-me enterrar qualquer um, e disseram-no os olhos azedos nas caras do padre, das carpideiras e dos gatos pingados. Eu limitei-me a cumprir o meu dever, colocar-lhe o óbolo na boca e entregá-lo a Caronte, com a mesma felicidade com que entreguei todos os outros.

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