Só uma vez o vi com medo, a caminho do hospital, o ar a lhe faltar. Seus olhos me diziam “ainda não é hora, eu preciso de mais tempo”.
Teve.
E soube apreciar cada minuto: viu tantos filmes quantos sempre quis, devorou página por página dos livros que um dia se prometera ler. Reuniu novamente a família, deu para cada um uma lembrança inesquecível – e mais do que isso, nos fez rir, e muito. Sempre foi de um humor escrachado, sem amarras, destes que faz rir até carpideira em horário de trabalho.
A proximidade da morte libertou ainda mais seu riso. Arquitetava cenas e combinava conosco a participação: quando o vizinho passasse de visita, nós deveríamos convidar-lhe a entrar - e já dar as notícias da saúde de papai. “Ele está bem, a quimioterapia tem surtido efeitos. O maior problema tem sido a queda dos cabelos, sabe como papai é vaidoso. Colocou uma peruca, não lhe caiu bem, mas nós estamos apoiando.” Esta era a deixa para que papai adentrasse a sala de peruca rastafári, as tranças escorrendo até a cintura. O vizinho ainda demorou-se um bom tempo elogiando seu “estilo tão jovial” até, enfim, perceber.
Não sei por que tanta gente repete feito maquina que a única certeza é a morte. Patavinas, era sim a última coisa que eu esperava, mesmo que todos os diagnósticos fizessem questão de afirmar, “quatro meses de vida”.
Nestes cento e trinta e dois dias aprendi um tanto que julgava já saber. Coragem, generosidade, escolhas, vontade: palavras que vivemos atirando aos outros, muitas vezes antes de sabê-las. Até que, em uma tarde de maio, quando segurava as mãos de meu pai e vi a vida sair de seu corpo, entendi a diferença que faz viver.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário