terça-feira, 17 de novembro de 2009

Dinastia Ming por Assunção Duarte

Lá em cima, no cume da montanha e escondido na névoa, estava o lugar da Honra Perdida. Os olhos doíam-lhe com o vento frio, forçando as lágrimas que escorriam deles como se de fontes se tratassem, indo morrer geladas sobre o cachecol de pêlo de panda que prendia frente da boca com a mão enluvada. Nunca tinha sentido tanto frio como agora e quase não conseguia respirar com a altitude, mas não podia fraquejar. A longa caminhada que tinha iniciado no começo do Outono acabava no cume daquela montanha. Depois podia descansar. O destino cada vez mais próximo deu-lhe ânimo para erguer a pesada espada e a cravar na neve, um passo mais acima. Com as duas luvas de pêlo bem apertadas em torno do cabo brilhante, conseguiu fazer avançar o corpo tolhido pela rigidez da armadura. Um guerreiro da Dinastia Ming morre em pé com a armadura vestida, mas pode blasfemar muitas vezes contra ela. Tentou descortinar por entre as lágrimas o trilho coberto de neve que o levaria ao lugar onde finalmente poderia descansar e esquecer para sempre o seu último combate em Lao Yang. O pai, um antigo samurai que se deixara seduzir pelas delicadas colinas chinesas, não iria ter vergonha dele. Há três coisas que nunca voltam filho, repetira ele vezes sem conta à sombra da Gardénia gigante do jardim: uma flecha lançada, uma palavra dita e uma oportunidade perdida. Os olhos ficaram-lhe mais molhados ao pensar na gardénia que a mãe plantara no jardim quando ele nascera. Cerrou os lábios gelados. Ele também nunca mais iria voltar.
- Lembrem-se que era outra época. Uma época em que a honra valia mais do que todo o ouro do mundo. E que se um guerreiro perdesse a sua honra, mais valia morrer logo ali, ou então procurar o lugar da Honra Perdida. Tudo era melhor do que regressar desonrado e ultrajar a sua própria casa, cobrindo a família de vergonha e infâmia!
Parei por segundos para sondar disfarçadamente a minha audiência. O mais pequenino mantinha a custo os olhos abertos. Estava quase lá, na Terra da Honra, montado na sua almofada branca alada e partindo à conquista da muralha da China com a ajuda do coelhito branco que apertava com menos força à medida que o sono ganhava terreno. Já a Maria e o Pedro, esses mais dificilmente chegariam lá. Olhavam para mim atentamente, à espera, e percebi que a Maria repetia baixinho uma palavra recentemente aprendida: infâmia.

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